Regressos
Sempre que visito a terra que me recebeu
depois de ser desenraizada, fica um incómodo, uma incompletude, um não
ser, mas também uma ternura singular de
um regresso às origens.
O Castedo representa ainda, na minha vida,
aquilo que de melhor ou de pior me construiu como pessoa. Se, por um lado,
o rigor das estações e o caráter agreste
das tarefas e das gentes me incutiram a inflexibilidade perante a adversidade,
por outro, o afeto peculiar por algumas figuras eminentes da freguesia (que já
partiram ou que o tempo vai degradando) e
pela Malta da minha geração (que raramente regressa, por circunstâncias
variadas ou por (des)encontros imprevistos)
continua a propiciar um certo estado edênico de felicidade, sem
regresso.
Cheguei ao Castedo no dia 26 de julho de 1975,
na companhia da minha mãe e do meu irmão. Tínhamos aterrado em Lisboa na noite
anterior, depois de uma semana a dormir no aeroporto de Luanda, porque havia
recolher obrigatório e os bombardeamentos na capital e as escaramuças entre
fações políticas adversárias era o prato do dia. Durante a noite e a madrugada,
fizemos a viagem de táxi e chegamos à aldeia quando decorria a missa na igreja
matriz. Entrei numa casa escura, sem qualquer fonte de luz natural (só podia
ser natural, porque não existia eletricidade). Apesar de cansados, o meu vestido de folhos e
às florzinhas traziam luz a um tempo que ficara perdido, estagnado na Idade Média.
A primeira pessoa a anunciar a nossa chegada à "santa terrinha" foi a vizinha da minha avó: a Sra Natividade, uma velhinha
solteira, com um ou dois dentes, surda e tecedeira exímia, de quem guardo um
carinho especial!
-
Olha a Cecília!!! Eufémia, a tua filha chegou!!
(Enquanto a Sra Natividade foi viva, pelava-me
que ela me deixasse ajudar a colocar a teia no tear. Depois de concluída essa
tarefa, para a enganar, pedia-lhe que fosse ver as horas ao relógio que ficava
no seu quarto. Mal ela virava costas, saltava para o tear e manobrava o pedal e
dava marradas com o pente na teia. O problema é que ela me excomungava
quando regressava com a informação das horas e reparava que eu lhe usurpara o
lugar no tear. Eram também longas as conversas sobre santos e santinhas e doce
o seu sorriso ingénuo quando não compreendia o que lhe dizia).
Mas a avó Eufémia, nessa manhã “curtia”
enrolada nos lençóis a sua tão famosa dor de cabeça, que só a largava depois de
longos repousos na cama e várias compressas de vinagre na testa!! O avô, Manuel
Luciano, mestre na arte de cantar ao desafio, estava para a missa. Por isso, lá
fomos acomodando o estômago com três malgas de sopa de feijões enormes a boiarem
no caldo...
Reuniu-se depois a família aos recém-chegados e eu explorava o casa dos avós ensimesmada com a enigmática parede da sala que ficara torta e teimara em não cair! Pernoitamos uns dias na casa dos avós, mas rapidamente foi alugada uma casita de duas divisões. No piso superior ficava o quarto, e a cozinha, contígua à sala em open space...e, no piso inferior, a casa de banho (por onde se acedia através de um alçapão e de onde se contemplava, de cócoras, os pés das gentes que passavam na rua, pela frincha do respiradouro)!!!
(Sempre que releio o excerto referente ao
primeiro encontro de Baltazar e Blimunda
de “Memorial do Convento”, em que são descritas as condições escassas da
casa de Blimunda, relembro o ambiente despojado e minimalista dessa primeira
habitação na rua do Sto António)
Foram dias difíceis! O pai foragido e
distante, de quem não sabíamos o paradeiro, a linguagem incompreendida, a
família incógnita, as roupas e enlatados do IARN, as reuniões públicas, na Casa
do Povo, com os partidos políticos que visitavam a aldeia e eram, por vezes,
escorraçados, pelos militantes jovens do MRPP (o meu primo Mário era um dos
líderes desse grupo que eu admirava e temia)!
Nesse ano, integrei a turma da terceira classe
que tinha aulas numa salinha com imensas frinchas no soalho, por onde passavam
lápis e canetas que aterravam nas lojas do Sr. Fernando “Parreco”.
Mais tarde, passamos para o edifício da escola
pública e o nosso professor Videira, calmo, paciente, incompatível com qualquer
ato mais irascível, era responsável por alunos da segunda e da terceira classe!
Na escola primária, lecionava também a quarta classe o professor Sousa, mais obstinado
e tenaz. Na casa do Povo, decorriam ainda as aulas da telescola, orientadas
pelo professor Camisa!!
Foram muitos os meus colegas de turma : a
Fátima, a Manuela Dias, a Ana Gonçalves, o António Luís, o Zé Mota, o Zé
Leandro, o Carlitos, o Paulo da Sra Ana e o Augusto, entre muitos outros.
(Nessa altura, a população do Castedo aumentara
extraordinariamente, com todos aqueles que retornavam das ex-colónias. E, por
isso, as turmas de vários níveis de ensino eram constituídas por miúdas e
miúdos de origem heterogénea! Verdadeira estratégia vanguardista de inclusão)
A mãe, na ausência do pai, lavava nos regatos gelados
no inverno, engomava com ferros em brasa, descera as bainhas das saias, porque
a moda das saias compridas era avessa à minissaia, tornara-se agricultora e
lavadora das casas da família. Muito esfregava esta mulher...E eu apanhava
grelos em flor para a tia Conceição, observava a avó Maria a amassar o pão, escutava
a história irrepetível da raposa e das uvas, contada pelo avô António e
“cartava” água das fontes e do “Chafurdo”.
Os trabalhos de apanha da azeitona, no
inverno, e das cegadas e malhadas, no verão, eram de extrema dureza e miúdos e
graúdos tinham de trabalhar!
Nesse ano, o meu aniversário foi passado no
Castedo com os avós, porque os pais e o mano partiram para Lisboa e eu não
podia faltar à escola. No final do ano letivo, mudamos de residência para o Porto.
No entanto, regressávamos ao Castedo durante
anos e anos. Agosto era o mês do (re)encontro com amigos de infância, com os
avós, com os tios, as primas e os primos que, ao longo da vida, deixamos de contactar,
porque se foram embora (tantas vezes para sempre e sem despedida formal).
Eram os tempos das festas e dos bailaricos da
aldeia e das povoações vizinhas, dos namoricos ingénuos e inconsequentes, das
conversas loucas até altas horas, dos matraquilhos, dos incêndios apregoados
pela Sra Ernestina “Cuca” ou pelo Manuel da Sra Lia, das histórias e pessoas que
povoaram a minha infância e adolescência...
Passados quarenta e muitos anos, regresso ao Castedo. A vida é outra! O
cenário é um aglomerado silencioso de blocos graníticos. A fisionomia
dos mais novos só remotamente faz lembrar traços expressivos de pais e avós!
Este ano, por mero acaso, por intercedência de um fatum feliz, fui premiada com uma surpresa agradável: o reencontro físico de quatro primas (Fernanda, Amélia, Lizete e Anabela) e de um primo (o Luís, da minha tia Maria, em modo virtual).
Vale sempre a pena voltar a uma casa que ainda nos pertence! Foi uma
tarde muito feliz.
Obrigada a todas pela surpresa!
Castedo, 26 de agosto de 2023
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