Regressos


Protótipo de cozinha tradicional, Malta 2020



Sempre que visito a terra que me recebeu depois de ser desenraizada, fica um incómodo, uma incompletude, um não ser,  mas também uma ternura singular de um regresso às origens.

O Castedo representa ainda, na minha vida, aquilo que de melhor ou de pior me construiu como pessoa. Se, por um lado, o  rigor das estações e o caráter agreste das tarefas e das gentes me incutiram a inflexibilidade perante a adversidade, por outro, o afeto peculiar por algumas figuras eminentes da freguesia (que já partiram ou que o tempo vai degradando) e pela Malta da minha geração (que raramente regressa, por circunstâncias variadas ou por (des)encontros imprevistos)  continua a propiciar um certo estado edênico de felicidade, sem regresso.

Cheguei ao Castedo no dia 26 de julho de 1975, na companhia da minha mãe e do meu irmão. Tínhamos aterrado em Lisboa na noite anterior, depois de uma semana a dormir no aeroporto de Luanda, porque havia recolher obrigatório e os bombardeamentos na capital e as escaramuças entre fações políticas adversárias era o prato do dia. Durante a noite e a madrugada, fizemos a viagem de táxi e chegamos à aldeia quando decorria a missa na igreja matriz. Entrei numa casa escura, sem qualquer fonte de luz natural (só podia ser natural, porque não existia eletricidade).  Apesar de cansados, o meu vestido de folhos e às florzinhas traziam luz a um tempo que ficara perdido, estagnado na Idade Média.

A primeira pessoa a anunciar a nossa chegada à "santa terrinha" foi a vizinha da minha avó: a Sra Natividade, uma velhinha solteira, com um ou dois dentes, surda e tecedeira exímia, de quem guardo um carinho especial!

-          Olha a Cecília!!! Eufémia, a tua filha chegou!!

(Enquanto a Sra Natividade foi viva, pelava-me que ela me deixasse ajudar a colocar a teia no tear. Depois de concluída essa tarefa, para a enganar, pedia-lhe que fosse ver as horas ao relógio que ficava no seu quarto. Mal ela virava costas, saltava para o tear e manobrava o pedal e dava marradas com o pente na teia. O problema é que ela me excomungava quando regressava com a informação das horas e reparava que eu lhe usurpara o lugar no tear. Eram também longas as conversas sobre santos e santinhas e doce o seu sorriso ingénuo quando não compreendia o que lhe dizia).

Mas a avó Eufémia, nessa manhã “curtia” enrolada nos lençóis a sua tão famosa dor de cabeça, que só a largava depois de longos repousos na cama e várias compressas de vinagre na testa!! O avô, Manuel Luciano, mestre na arte de cantar ao desafio, estava para a missa. Por isso, lá fomos acomodando o estômago com três malgas de sopa de feijões enormes a boiarem no caldo...

Reuniu-se depois a família aos recém-chegados e eu explorava o casa dos avós ensimesmada com a  enigmática parede da sala que ficara torta e teimara em não cair! Pernoitamos uns dias na casa dos avós, mas rapidamente foi alugada uma casita de duas divisões. No piso superior ficava o quarto,  e a cozinha, contígua à sala em open space...e,  no piso inferior, a casa de banho (por onde se acedia através de um alçapão e de onde se contemplava, de cócoras, os pés das gentes que passavam na rua, pela frincha do respiradouro)!!!

(Sempre que releio o excerto referente ao primeiro encontro de Baltazar e Blimunda  de “Memorial do Convento”, em que são descritas as condições escassas da casa de Blimunda, relembro o ambiente despojado e minimalista dessa primeira habitação na rua do Sto António)

Foram dias difíceis! O pai foragido e distante, de quem não sabíamos o paradeiro, a linguagem incompreendida, a família incógnita, as roupas e enlatados do IARN, as reuniões públicas, na Casa do Povo, com os partidos políticos que visitavam a aldeia e eram, por vezes, escorraçados, pelos militantes jovens do MRPP (o meu primo Mário era um dos líderes desse grupo que eu admirava e temia)!

Nesse ano, integrei a turma da terceira classe que tinha aulas numa salinha com imensas frinchas no soalho, por onde passavam lápis e canetas que aterravam nas lojas do Sr. Fernando “Parreco”.

Mais tarde, passamos para o edifício da escola pública e o nosso professor Videira, calmo, paciente, incompatível com qualquer ato mais irascível, era responsável por alunos da segunda e da terceira classe! Na escola primária, lecionava também a quarta classe o professor Sousa, mais obstinado e tenaz. Na casa do Povo, decorriam ainda as aulas da telescola, orientadas pelo professor Camisa!!

Foram muitos os meus colegas de turma : a Fátima, a Manuela Dias, a Ana Gonçalves, o António Luís, o Zé Mota, o Zé Leandro, o Carlitos, o Paulo da Sra Ana e o Augusto, entre muitos outros.

(Nessa altura, a população do Castedo aumentara extraordinariamente, com todos aqueles que retornavam das ex-colónias. E, por isso, as turmas de vários níveis de ensino eram constituídas por miúdas e miúdos de origem heterogénea! Verdadeira estratégia vanguardista de inclusão)

A mãe, na ausência do pai, lavava nos regatos gelados no inverno, engomava com ferros em brasa, descera as bainhas das saias, porque a moda das saias compridas era avessa à minissaia, tornara-se agricultora e lavadora das casas da família. Muito esfregava esta mulher...E eu apanhava grelos em flor para a tia Conceição, observava a avó Maria a amassar o pão, escutava a história irrepetível da raposa e das uvas, contada pelo avô António e “cartava” água das fontes e do “Chafurdo”.

Os trabalhos de apanha da azeitona, no inverno, e das cegadas e malhadas, no verão, eram de extrema dureza e miúdos e graúdos tinham de trabalhar!

Nesse ano, o meu aniversário foi passado no Castedo com os avós, porque os pais e o mano partiram para Lisboa e eu não podia faltar à escola. No final do ano letivo, mudamos de residência para o Porto.

No entanto, regressávamos ao Castedo durante anos e anos. Agosto era o mês do (re)encontro com amigos de infância, com os avós, com os tios, as primas e os primos que, ao longo da vida, deixamos de contactar, porque se foram embora (tantas vezes para sempre e sem despedida formal).

Eram os tempos das festas e dos bailaricos da aldeia e das povoações vizinhas, dos namoricos ingénuos e inconsequentes, das conversas loucas até altas horas, dos matraquilhos, dos incêndios apregoados pela Sra Ernestina “Cuca” ou pelo Manuel da Sra Lia, das histórias e pessoas que povoaram a minha infância e adolescência...

Passados quarenta e muitos anos, regresso ao Castedo. A vida é outra! O cenário é um aglomerado silencioso de blocos graníticos. A fisionomia dos mais novos só remotamente faz lembrar traços expressivos de pais e avós!

Este ano, por mero acaso, por intercedência de um fatum feliz, fui premiada com uma surpresa agradável: o reencontro físico de quatro primas (Fernanda, Amélia, Lizete e Anabela) e de um primo (o Luís, da minha tia Maria, em modo virtual).

Vale sempre a pena voltar a uma casa que ainda nos pertence! Foi uma tarde muito feliz.

Obrigada a todas pela surpresa! 

 

Castedo, 26 de agosto de 2023


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