À Cecília moça, mãe, mulher, e avó…

 

Até aos cinco anos, depois da minha mãe ter cortado a trança, éramos apenas as duas de mão dada…

Eram as visitas às amigas, os passeios nos jardins do Mochico, com vestidinhos de veludo vermelho, rendinhas, laços e totós arrepiados que demoravam uma eternidade a concluir, mas poucos instantes a desmanchar …
Esses…foram tempos de emoções fortes:
As amígdalas enfadonhas, as lombrigas, os mosquitos, o paludismo, a cólera, ou a temida febre amarela…as corridas para o hospital em chinelos …o intragável óleo de fígado de bacalhau, as toneladas de hortelã e as quedas desastrosas…
- Vai lavar as mãos, não coces, pára quieta!!!
- Amanhã tens de levar “uma pica” na Vila Alice (ou no Bairro Popular)…
Foram também momentos de birras intermináveis, do chinelo sempre em riste, da teimosia desesperante da mãe e da filha
- Come a sopa, Lizete! Não sais da mesa, enquanto não acabares. Olha que levas com o chinelo! Não sejas teimosa!!!
- Dói-me a barriga!!Dói-me o estômago!!! Não consigo comer!!
(A minha mãe não sabia, mas eu via jogos de futebol, nos “olhinhos” do azeite da sopa e nunca engolia o feijão.)
Foram também os espetáculos e as cantigas dedicadas às vizinhas, com a vassoura a servir de microfone, no quintal de casa, no “Chá das Cinco" ou nos programas infantis da Emissora Nacional...
(Eu sou muito pequenininha, e não posso namorar,
Porque a mamã não deixa e o papá não vai gostar
Se eu pudesse namorar…
Infelizmente não pode ser!!
Mamã, só depois de eu crescer…)
- Hoje, não cantaste muito bem!!
(A Barata diz que tem uma irmã que é pianista
É mentira da Barata.
A irmã dela é vigarista)
Foram também os penteados improvisados nos cabelos das amigas:
- O que queres ser, quando fores grande?
- Cabeleireira ou cantora!
Dessa altura, guardo ainda a memória eterna da nossa cadela “Fineza”, dos baloiços no portão da Susana, das viagens na mota do primo da Rosa, do cheiro a terra molhada com os pés descalços perdidos numa substância barrenta e pegajosa, dos banhos intermináveis na praia, já com os lábios roxos e os dentes a tocar castanholas, …
Mais tarde…quando o “menino” nasceu...
- Lizete, toma conta do menino…
E como a Lizete não estava interessada em “menino nenhum”, e gostava muito mais de atuar em frente ao espelho, o Zé Vitor, branquinho, lourinho e com os olhos amarelados, caiu da cama, logo no primeiro dia em que chegou da maternidade.
(Ainda hoje, ninguém acredita que eu não lhe mexi e que aquele embrulhinho se virou sozinho!!!Quem lhe mandou ser irrequieto!!!)
Quando chegou o tempo da escola, a minha mãe continuou vigilante, mas implacável!!!
- Vais para a escola sozinha! Já sabes o caminho! As tuas amigas estão à espera no portão!
- Senhora professora, se ela precisar, bata-lhe!!!
Nunca gostei que a minha mãe fosse falar com as professoras. Na escola primária, a primeira, que tinha medo dos“turras”, chamava-se Maria das Neves (Coisa estranha, a neve! E o plural, então, era insondável…) e a outra Marília, lingrinhas, que era má como as cobras, tinha nome de bruxa, e perguntava interminavelmente a tabuada…)
Nunca conheci mais ninguém com o nome Maria das Neves…A verdade também é que ninguém se chamava Lizete!!! 
(Se fosse Maria Lizete, como a minha mãe queria, em homenagem à irmã mais velha, teria pesadelos aterradores!!!)
No entanto, de regresso a casa, a D. Cecília tinha sempre pão quentinho com manteiga e leite de chocolate, à minha espera, enquanto escutava a interminável radionovela “Simplesmente Maria”.
Foram os tempos do Fiat 600, das sessões do cinema no bairro e no Miramar, dos jogos de futebol e de hóquei, das corridas de motocross, quando saiamos em família, mas também as tardes do crochet que me “obrigou” a aprender, no momento em que comecei a ler e a escrever e das cantigas misteriosas e sempre dramáticas que entoava da sua terra…
“…Era pequena e nova, já sabia namorar/ E foi pedir a seu pai/licença pra se casar/O pai assim qu’isto ouviu/Ó filha, o que vais fazer/Estás na flor da tua idade/Vais te deitar a perder!..."
De regresso à Metrópole, com os filhos, após intermináveis dias a pernoitar no aeroporto para ter lugar na ponte aérea e a engomar roupa molhada para a colocar à pressa nas malas, foi a época em que a D. Cecília se superou: desceu a bainha das minissaias, pintou a nossa casa sozinha, comprou móveis, costurou para as vizinhas, começou a engomar com ferros de brasas, voltou a lavar no rio, a cozinhar ao lume e transformou a casa da mãe e da prima, em espaços resplandecentes de pureza, numa terra de negrura e queixume…
- Lizete, leva o jarrinho e vai buscar água ao “Chafurgo”.
Lá vinha com o parco jarro cheio e, numa fração de segundos, o estupor da água era despejada nas tábuas esfregadas e, eu, triste como a noite, via o meu esforço ser completamente humilhado e voltava à fonte para o encher de novo!!!!
- Lizete, tens de levar o molho à cabeça.
(Irra, aquilo doía!
Tanto me obrigou a transportar os paus para a lareira que o excomungado molho de giestas nunca serviu para nada.!!!!)
Foram os tempos em que conhecemos o martírio do inferno, como indicavam os anjos papudos e as cenas da vida de Cristo na casa da avó Eufémia...
(O Castedo simbolizava, para mim, naquela altura, a vida no Inferno: as mulheres vestiam-se de preto, traziam lenços da mesma cor que dobravam à frente da boca; a maioria só tinha um dente e falava uma língua sibilina; as fragas, graníticas, eram negras e frias, as neves e os gelos de inverno petrificavam pele e osso e o tempo das searas era muito cruel…)
Valia-me a Sra Natividade que era surda, tecedeira, que me deixava ajudá-la a colocar a teia no tear e me contava histórias misteriosas de santos e santas…
- Tens os dedos compridos!! São dedos de habilidade!!!Raios te partam, não mexas no pedal nem no pente!!! Já me rebentaste as linhas!!!!
No entanto, foi aí que tive consciência da utilidade de saber ler e escrever e inocentemente desejei ensinar as minhas avós…
Depois na cidade, recomeçamos em família…
Voltamos ao crochet, às bainhas cozidas a metro e ao reino das alças e dos vestidos, concluídos diariamente às dúzias e sem tempo para muitos afetos!!!!
Cada um tinha a sua especialidade: a minha não era, na altura, coser à máquina, nem fritar peixe…talvez fosse mais o latim ou ensinar os mais pequenos a ler…
Foram anos de muito trabalho e até, como se diz hoje, de exploração infantil, mas sem depressões, nem dependências, porque ralhávamos, discutíamos uns com os outros e todos desenvolvemos  espírito crítico e argumentação refinada.
No entanto, o pior martírio acontecia quando tratava do meu guarda roupa:
- Levanta o braço, tenho de cortar mais a cava!
(Era um pesadelo ao ver que a ponta de tesoura podia furar-me a axila...)
- A saia esta larga e curta? Não faz mal, estás a crescer!!
- Lizete, não me digas que já subiste a bainha da saía...

As emoções fortes regressaram quando me tornei adulta e, principalmente, mãe. Voltamos a andar de mão dada, como se fossemos meias irmãs
(a D. Cecília pequenina com aparência de continuar com 33 anos ficava toda contente e eu de salto alto com ar de senhorinha franzia a testa contrariada)
Nessa altura, a minha mãe foi uma companheira e uma aliada inigualável…
Tratou do meu filho e dos restantes netos com um grande desvelo, com uma enorme cumplicidade com os mais novos e uma paciência de santa.
- Mãe, o João não pode comer batatas fritas nem ovo estrelado!
- Está bem! Só uma vez por semana!
Ao outro dia, o catraio abria-me a porta de entrada, ainda com os cantos da boca amarelos de gema de ovo…
- A Inês não quer a sopa, não come. Não gosta de sopa, sai à tia!!!
- Vais ver como vai comer…Olha ali o passarinho!!!!
(E a miúda lá comia…)

- Tens de saber a Salve Rainha, Diogo. Repete: Salve, Rainha, Mãe de misericórdia...
Por vezes, são as situações mais insólitas que lembramos ambas com carinho: as viagens de avião nas festas da Sra da Assunção, em que a D. Cecília com a sua carteira rodava no avião, que, à exceção dos outros, não subia, porque só estava ali a guardar o lugar para depois nos divertirmos; o desaparecimento do João quando corremos a Baixa para escolher uns sapatos 34 que não magoassem o joanete para o casamento do Zé Vitor; os momentos do terço que nos contagiavam de um riso sem nexo
, o dia da ampola para a queda do cabelo…

Aos setenta anos... alcançou uma luminosa resignação que a torna mais risonha…
Acho que a minha mãe aprendeu a sorrir e a ver a vida mais cor de rosa, mas continua a reclamar de mansinho!!!
- Agora nunca tens tempo para conversar comigo!!!
- Então, estás em casa, ou na escola?
- Não sei o que hei de fazer ao teu pai, filha!
(Quase nunca me chamava filha, quando eu era mais nova)…


 Mãe, espero continuar a ouvir durante muitos anos as mesmas ladainhas, porque significa que poderemos continuar de mãos dadas!!!!

Lizete Pinheiro,

5 de maio de 2019


Comments

  1. Gostei particularmente do chorrilho de desgraças finais....

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