A casa dos avós

 




A casa dos meus avós

Lembro-me da casa dos meus avós maternos, numa idade propícia a fantasias e cogitações existencialistas. Era uma casa sombria e carregada de mistérios. As paredes volumosas e graníticas albergavam segredos insondáveis de famílias perdidas no tempo e só conservados nas conversas à lareira…

Recordo de, num tempo longínquo da minha infância de mulherzinha precoce entre folhos e florzinhas, ter entrado numa casa escura sem eletricidade nem luz solar. Esta só podia, sorrateiramente, assomar por uma vidraça no quarto dos meus avós para anunciar uma nova jornada de trabalho. Era a única janela da casa. O resto eram tábuas de sobrado com buracos e aberturas (por onde passava uma candeia para iluminar a adega que ficava por baixo da cozinha); eram paredes de madeira com frinchas, que permitiam observar as atividades enigmáticas dos vizinhos; eram blocos de granito frio e austero com esconderijos onde se guardavam produtos agrícolas mais raros e menos perecíveis, certos segredos escritos, latas com dinheiro...; eram espaços arquitetados ardilosamente na lenha onde se colocava a chave de casa escondida de possíveis larápios.

Para além destas aberturas pragmáticos e labirínticos, existia também uma portinhola falsa entre a cozinha e uma outra divisão, onde dormiam todos os que não eram os donos da casa e tinham o estatuto de pernoitar juntos, podendo assim transitar para o espaço de alcova, sem ter de se confrontar com o rigor do clima. A aludida divisão tinha sido um acrescento à casa e era ladeada por uma varanda. Possuía uma particularidade única na aldeia e semelhante à Torre de Pisa: apresentava uma das paredes inclinadas. O entaipado frágil da parede exterior, vítima de algum abalo, ou de outras circunstâncias desconhecidas, terá tombado, mas não chegou a cair (mesmo depois da casa ficar desabitada largos anos), ainda que os avós acautelassem, incansavelmente, os netos para não saltarem no soalho da varanda, não fosse a parede lembrar-se de se estatelar finalmente.

Depois cá fora havia uma outra divisão em que ficava o burro, ou, numa época anterior as vacas e os bois, e onde se guardava a lenha para alimentar o fogo que aquecia a casa e servia de único combustível para confecionar as refeições frugais e de preparação rápida. No quinteiro esgaravatavam a terra as galinhas que eram soltas do galinheiro, logo pela manhã, e roncavam os recos a chafurdar no lodo da palha e cuja pocilga ficava na primeira loja das fundações da casa. Ao lado da corte dos porcinos, situava-se a adega e a suposta casa de banho. Esta tinha a singularidade de ser um espaço redondo, solitário, propício a reflexões longas e profundas, mas era minimalista no mobiliário. Dispunha apenas de palha mais aromática ou menos, de acordo com os utentes e das necessidades de adubar as terras. Para além da varanda exterior no primeiro andar, onde habitavam os proprietários e outros familiares que os visitavam, principalmente no verão, havia um espaço único de lazer e liberdade: o CABANAL. O cabanal era a minha área de eleição!...  Fora instalado por cima do galinheiro do lado esquerdo da entrada principal, irmanado com a fraga erguida na vertical e estava coberto de lenha ou de palha. Aí, secavam-se os figos, os feijões, o grão-de-bico e outros produtos. Aí, durante a tarde, as mulheres da casa gozavam a luz solar e, enquanto manipulavam as agulhas da meia, informavam-se sobre as notícias mais recentes do povoado ou davam largas à análise ponderada dos variados temas da vida da vizinhança. Nesse tempo, em que não tinha grande experiência da vida rural, subir ao cabanal era uma manobra perigosa: era necessário saber trepar, ter pezinhos astutos de caprino, porque, na fraga, havia apenas três cavidades pequenas onde se poderia apoiar o pé. Porém, escalado o obstáculo, lá em cima, era a descoberta de uma vista deslumbrante, que abarcava um horizonte alargado de montes, árvores e telhados, era a dádiva chapada da luz sem sombras, era a sensação de ampla liberdade num mundo cinzento, limitado, claustrofóbico. 

Lizete Pinheiro

janeiro de 2022

Comments

Popular posts from this blog

Em terras ancestrais

Simplesmente Maria