Em jeito de Despedida
EM JEITO DE DESPEDIDA...
Aos meus alunos do 12.º ano
Não há nada mais triste que uma ausência (...), só fica uma pungente melancolia, esta que faz (...) sentar ao cravo e tocar um pouco, quase nada, apenas passando os dedos pelas teclas como se estivessem olhando um rosto quando já as palavras foram ditas ou são de menos.
José Saramago, Memorial
do convento
Em conformidade com o desafio que me foi colocado, venho apresentar em retrospetiva alguns momentos que caracterizaram estes três anos de convívio e partilha de conhecimentos e de afetos com a turma de artes.
Em setembro de 2019, conheci a
maioria dos alunos que faz parte desta turma.
Como em qualquer início de ano letivo, o meu estômago torcia-se de perturbação e nervosismo e a voz não obedecia à minha vontade de demonstrar segurança e clarividência. Tinha à minha frente um grupo de gente desconhecida. Não lhes sabia as vidas, os modos, os gostos. Tentava sondar os verdadeiros seres escondidos em cada rosto… Em 33 anos de docência nunca tinha sido professora de uma turma de Artes. A minha grande expectativa era a de que estes alunos seriam uma promessa de criatividade e irreverência. Seria, por isso, mais um ano de desafios…
Nesse primeiro ano, as aulas eram
palco de uma língua reinventada, que não existia nos seus dicionários. Não compreendiam
o galaico português da poesia trovadoresca e muito menos o linguajar da crónica
de D. João I e, por isso, eu tinha de traduzir os textos para português
contemporâneo simplificado, porque os bros e os manos, repetidos
infinitamente, não admitiam termos mais aburguesados…
Além disso, esgrimiam-se em
argumentar que o programa da disciplina que leciono e principalmente a
gramática (que é intoleravelmente domada por eles) não teriam qualquer
utilidade no futuro. Facto consumado: elas e eles desenhavam, e alguns… dormiam.
Para mim, era impensável que o Gonçalo pudesse adormecer com a estridência da
minha voz! Como podia ele viajar, durante horas a fio, por paragens anónimas e viver
aventuras impraticáveis numa sala de aulas? Todavia, deixava-o quietinho nos
seus sonhos reconfortantes de menino…Não fosse ele protagonizar reflexões insofismáveis
do ser e do não fazer!
Não obstante esta contrariedade, eu
não desistia. Relutante, acordava-os com a comicidade das situações e as réplicas
das personagens de Gil Vicente. Dramatizava sozinha, escrevia os textos que
lhes pedia. Fazia perguntas e dava as respostas, porque o silêncio era
sepulcral. Elas e eles até achavam graça, mas continuavam a desenhar… Sabiam redigir
e estruturar as sínteses descritivas e queriam sistematicamente enviar emails para
a Casa do Caminho, uma instituição de urgência para crianças, que visitavam e a
quem ofereciam bens essenciais. Eu não podia adiar a redação dos e-mails,
porque esse propósito era superior a qualquer autor conceituado da literatura
portuguesa.
Infelizmente, entramos em confinamento. Durante algum tempo, estudamos a lírica de Luís de Camões e as considerações do poeta n’ “Os Lusíadas”, que ainda hoje não entendem. Durante esse tempo de clausura, pedia-lhes trabalhos, alguns entregavam atempadamente, outros continuaram a desenhar, enquanto assistiam às aulas, e outros mantinham-se num estado de sonolência constante…
Regressamos, no ano seguinte,
ainda de máscara!!! Falamos de peixes que ouviam obedientes a doutrina de Santo
António, convivemos com os amores e desamores de D. Madalena de Vilhena, a quem,
inflexivelmente, o ex-marido surgia do passado (num tempo em que não
havia divórcios), aplaudimos as loucuras de Simão Botelho que eles matavam, porque
cometera suicídio, e vibravam com o meu entusiasmo quando ria sozinha das recreações
realistas do Eça de Queirós. Continuavam a fazer esboços, a desenhar, a pintar...
e, por magia, apareciam, nas minhas aulas, personagens alienígenas, que eu não tinha
convidado, por baixo dos livros e dos cadernos de português.
Tentei enriquecê-los com outras facetas de se estar na vida: instruí-los sem querer, emocioná-los devagarinho… Porque para além de conteúdos, vivemos emoções! Trouxe-lhes outros livros, algumas músicas, muitas imagens, obras de pintores que conheciam, ou nem tanto, sugestões de aromas e sabores, certas memórias! Até me lembrei de os premiar com bolachas!! A partir daí, parecem o monstro das bolachas da Rua Sésamo. Só querem BOLACHAS…Nesse final de ano, despedimo-nos da Ana Costa, da Cátia, do Bonina, da Ana Sofia Sousa, que passaram a frequentar outras escolas, e da Beatriz Queirós, que habita o mundo para onde sobem as vontades…
Em setembro de 2021, reiniciamos
as aulas, com o Tamm, o nosso aluno tailandês que veio juntar-se às nossas oito
meninas, vivaças, louquinhas, e ao único cavalheiro sensato deste grupo. Em
novembro, a pacata paz das aulas sofreu um ligeiro abalo, porque, pela primeira
vez em três anos, saímos da escola e viajamos até Braga para assistir à peça Em
Pessoa. Depois do alarido na viagem de comboio e da espera dos atores para
iniciarem o espetáculo, porque chegamos atrasados, assistimos à peça com
entusiasmo. Porém, o Tamm contagiado por um vírus que eu julgava erradicado
desta turma, com a melopeia pessoana, adormeceu. Mas despertou rapidamente,
porque à saída do espetáculo, como o outono tinha chegado severo a Braga, o Tamm
tocava castanholas a tremer de frio…
Afinal, a Beatriz, metáfora de felicidade, lê livros que são para mim enigmas e escreve extraordinariamente. Entre a risada desafiadora, o dramatismo temporário e a avidez do conhecimento, revelou-se uma singular produtora multimédia e uma jovem cheia de convicções e com um futuro promissor. Afinal, a Daniela, introspetiva e de sorriso fácil, é uma visionária porque, de tanto me questionar, adivinhou que vou ter saudades deles, agora e num futuro bem distante. Afinal, a Érica é fogo que arde e bem se vê. A moça solta os foguetes, faz a festa, escolhe sempre alguma situação que nos faça sorrir e com ela a tristeza vai embora. Afinal, a Joana Alves, que me tolera há cinco anos, continua a ser uma menina de afetos. Ri como cascalho a esboroar-se e argumenta com segurança, mesmo que seja só com o ritmo cadenciado do pestanejar. Afinal, a Joana Madureira é a nossa artista de eleição. No silêncio do anonimato surgem expressivas e irreverentes personagens e exemplares escritos de vivências implosivas. Afinal, o José Veiga é a voz da razão e do equilíbrio num mundo do feminino. É sábio na contradição e também na sedução...Afinal, a Sara é uma caixa de pandora onde vive a Esperança e a Amizade. É a mão aberta a todos os desafios e o ombro amigo a todos os desatinos... Afinal, a Sílvia lançou fora o embaraço. O seu novelo começou a ganhar espaço e como borboleta pequenina vai ganhar asas e voar alto… Afinal, a Sofia é dotada de uma voz melodiosa e expressiva. É pena que ela se recuse ainda a soltá-la, pois o seu mundo seria bem mais colorido! Afinal o Tamm conseguiu participar em alguns projetos e atividades quer na disciplina de português quer nos trabalhos realizados em articulação com outras disciplinas e adquiriu com destreza também o hábito de desenhar…Afinal, aprendemos juntos, afinal construímos juntos,!!!
Afinal!!!
Afinal!!!
E acima de tudo desejo que saibam cultivar a amizade...
Têm de ser amigos especiais, amigos para a vida. Daqueles que, como sugere Vinicius de Moraes, gostem de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa.
Amigos que saibam conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Amigos que gostem de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, da beira de estrada,
Amigos que nos batam nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chamem de amigo, para se ter a consciência de que ainda se vive.
Desejo, assim, muitas felicidades
para todos e muitos sucessos!
Até sempre!!!!
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