Simplesmente Maria

 

SIMPLESMENTE … MARIA!



As fotografias fazem viver dentro de nós momentos únicos, retalhos de vida, emoções fortes ou melodramas pessoais. Fazem-nos conhecer, talvez, algumas circunstâncias contidas apenas na memória de quem as vivenciou.

Naquela tarde, quando o outono anunciava chuva e o aconchego apetecia, abri a gaveta que alberga um amontoado de estórias de outros tempos e recolhi uma gravura que pertencera à minha avó paterna

Virei o verso da estampa e reparei que tinha a data de 1961, quando o filho mais velho partira para a guerra do ultramar. A ternura do abraço do filho que elevava a mãe era surpreendente para mim. A avó Maria viera despedir-se do primogénito, antes de este entrar para o navio, que o levava para combater os “turras” e iria fazer parte do primeiro grupo de paraquedistas na guerra de Angola. Seria um espaço de entendimento, de conjugação do amor entre mãe e filho que sempre existiu na alma de cada um, mas não na comunicação dos afetos.

Lembro-me do reconto ininterrupto das aventuras meio ficcionadas do meu pai, mas nunca foi feita alusão ao facto da mãe ter saído da “santa terrinha” para se ir despedir dele a Lisboa… Por isso, o momento singular sugerido naquele pedaço de papel, quando ele e a mãe ainda tinham o coração cheio de expectativas, não ocorreu realmente, mas, talvez, tenha sido sonhado no seu amor tão único e próprio de mãe!

A avó Maria era uma mulher grande. Descendente de galegos, herdara a força e a valentia do pai, o bisavô Zé Gomes, que seria o homem mais forte do concelho. Era padeira e detinha talvez a força da sua congénere de Aljubarrota. Com os braços possantes enterrados na farinha transformava essência em pão, que distribuía pelas gentes da terra. A masseira era fonte de prodígios. Das mãos largas nasciam os trigos e centeios para alimentar a aldeia ou, num ato de plena criação, moldava com a massa que sobrava pequenos pássaros para premiar os netos. Depois da azáfama da lavoura e da massa levedada, à meia noite, acendia o forno e, enquanto outros retemperavam corpo e alma, a avó Maria cozia o pão.

 Os “bichinhos” feitos de pão representavam os seus parcos carinhos diários… As palavras elogiosas escasseavam e os beijos e os abraços não existiam…

No início, quando ainda era a menina única da família e o principal motivo do seu enlevo, sentava-me no vasto colo e dava-me a sopa, onde eu sonhava intrigas, nos “olhinhos” do azeite. Por isso, quando alguém me perguntava, indecorosamente: De quem gostas mais? Da avó Eufémia ou da avó Maria?

Eu respondia: - Da avó Maria!!

(No final da vida: - A senhora quem é???)

- Mais tarde, quando chegaram os rapazes, o seu amor mudou e a neta mais velha tornou-se personagem secundária, porque a avó os recolhia exclusivamente no seu regaço

- Anda cá, meu filho!… Estás tão crescido!!

Vinte anos depois, quando outro rapaz nasceu na família, visitou-me, mas negligenciou qualquer cuidado pela minha fraca arte parideira e, de olhos brilhantes, estendeu os braços e ordenou categórica:

- Dá-mo cá!!!

Albergou-o no seu largo colo, num amplexo, como se fosse outro dos nove filhos que gerara, mas que grande parte a natureza lhos fez perder.

- Ó meu filho…que rico menino!!!!

(No final da vida: - A senhora quem é???)

Antes de deixar de ter esperanças, por vezes, intercedia em favor do meu pai e tentava aproximá-los:

- Não sei o que fiz ao teu pai? Agora está sempre contra mim…ripostava comigo, como se fosse eu responsável por conjunturas de discórdia. Porém, tal como ela, a resposta não tardava e afivelava-lhe qualquer responso…e para me enfurecer, lá vinha a ladainha:

- Os filhos da minha filha, meus netos são, os do meu filho, serão ou não….

A amiga Celesta, longa companheira de vida e irmã na morte, advertia-a!

- Ó Maria, bem podes gostar da rapariga!!! É a tua cara chapada…

- E eu bem gosto!!!

(No final da vida: - A senhora quem é???)

Nessa época, custava-me acreditar nessa maneira tão peculiar de amar!!

Fazia um esforço por entender algum azedume, certas mágoas, mas afastava-me, cada vez mais, porque a avó Maria criava barreiras e ficava inexorável.

Tanto dava uma reprimenda colossal, como logo a seguir:

- Come, aí, um naco de presunto ou de queijo. Ora, come o peguilho e deixa o pão!

Só uma vez a vi chorar…

Decorridos alguns anos de experiência maternal, finalmente, acabei por entender a minha avó, o seu subtil desamor e os contidos afetos. A sua atitude era a voz de um ciúme em relação ao maior, único e transcendente amor:  o amor desinteressado, renegado, e traído de mãe.

Na impossibilidade de receber afeto de forma espontânea e convivendo paredes meias com a solidão, já que enviuvara cedo e os netos tão estimados tinham conhecido a vida longe das suas saias, reagia orgulhosa a qualquer ato de ternura. Se não podia manter a cumplicidade e ser parte ativa na decisão dos filhos, então não precisava de visitas ao domicílio, feitas pela formalidade de parecer bem!

(No final da vida: - A senhora quem é???)

Aos oitenta e muitos anos a minha avó partiu e não voltou a ralhar!!! Teve uma vida longa, mas penosa, sempre penosa!!!

(Extensos seriam os dias em que, a cinquenta quilómetros de casa, esperava o dia inteiro na fila para o pão, e, por vezes, chegava sem uma côdea para a ceia, porque, no tempo da guerra não havia mais nada para calar a fome..)

Deixou filhos, netos e bisnetos, sem conseguir reconhecer nenhum deles. Levou consigo, num casulo de segredos, as memórias de uma vida, de parcos sorrisos e de muitas canseiras.  Nos últimos tempos, as conversas eram longas e desconcertantes, porque, de um momento para o outro:

- E a senhora, quem é?

Através deste texto, pretendo relembrar a minha avó paterna e evocar todas as mulheres que viveram por AMOR. Mesmo que tenham sido incompreendidas e pouco amistosas, nunca deixaram de lutar pelo seu lugar no mundo e de afirmar a sua força e o seu valor de ser Mulher!!!

Beijinhos a todas e um FELIZ DIA DA MULHER!!!

Homenagem à minha avó Maria Gomes, Dia da Mulher 2020

 

 

 

 

 

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