Esta é uma narrativa ficcionada, baseada numa situação mais ou menos real, que nos fazia rir, contada pelos meus avós, quando a família se reunia à volta da lareira …

QUE GRANDE ALVOROÇO!

Certo dia, o ti Manel Aires, que emigrara para França e por lá criara alicerces durante mais de trinta anos, chegou à terra, que o viu nascer, prostrado e cheio de moléstias, pronto para entregar o corpo às ervas daninhas e às raízes das árvores.

Como não tinha família direta, porque nunca casara e não tivera filhos, teve de pedir guarida a alguns familiares.

O sorteio premiou os sobrinhos em segundo grau Cassiano e Conceição… Estes trataram-no bem com os parcos recursos de que dispunham, mas o certo é que o ti Manel Aires acabou por falecer.

Foi premente escolher o local onde iria velar-se o corpo do morto, porque a casa dos sobrinhos era muito estreita e não estava em condições para acolher as gentes da aldeia. Apesar de a morte ser motivo de grande desolação, nas terras curtas e longínquas da civilização, o óbito de um conterrâneo é um momento de recriação e diversão, porque durante horas recordam-se façanhas em que o defunto foi personagem principal.

Assim, com uma estimativa de que estaria presente toda a aldeia, o Cassiano e a Conceição viram-se obrigados a pedir que o velório do ti Manel fosse na casa de outro familiar.

O corpo inerte do tio solteiro foi cuidadosamente transferido para a casa dos sobrinhos Luciano e Eufémia, que dispunham de uma habitação mais espaçosa, mas com o soalho a necessitar de obras, uma vez que as tábuas gastas pelos tempos já rangiam debaixo dos pés austeros dos seus proprietários.

À noite chegaram os convivas para “adorar” o corpo do “filho pródigo” e rico de saberes estrangeiros. A casa ficou sobrelotada, tal foi a curiosidade da multidão de campónios e pastores!... O vinho e o pão oferecido pelos anfitriães animaram “A MALTA”. Recordavam-se histórias jocosas daquela personagem aventureira, ditos insólitos, memórias agradáveis.

O que ninguém esperava era que aquela casa guardava também uma bela surpresa…, pois, no auge da conversa e da agitação, estimuladas pelo calor do vinho, o peso excessivo da populaça foi tanto que o chão ruiu. As pessoas que rodeavam o morto caíram com ímpeto nas pocilgas e nas lojas do burro e o morto, claro está, desabou desconjuntado, em cima da assistência, que julgara que o ti Manel tinha ressuscitado.

Entrou tudo num transe desesperado!

O senhor Zé Calvo gritava:

- Não encontro os meus óculos, ficaram estilhaçados por baixo do pé do morto vivo!!!  Não consigo ver o que se passa. Não sei onde estou!!! SOCORRO! Tirem-me daqui. AINDA não quero morrer...

- Aqui d’el rei! a minha dentadura ficou em cima do traseiro do defunto… Que nojo. Quem me ajuda…Não consigo comer nada sem dentadura!!!

- Mas que desgraça esta!!!  Os mortos voltaram à vida…Estamos no fim do mundo ou é ilusão ótica?

Passados alguns segundos, as visitas ocasionais e bisbilhoteiras do ti Manel corriam rua acima desesperadas porque estava a chegar o apocalipse.

Resultado: no dia seguinte, o Cassiano e a Conceição receberam o corpo do tio viajante na vida e na morte que, mais tarde, recolheu tranquilamente ao mausoléu da família. Durante muito tempo, este ato insólito foi motivo de graça entre o povo da aldeia, pois, apesar do susto, rir de si próprio seria sempre o melhor remédio.

 

Ermesinde, 15 de junho de 2025

Lizete Pinheiro

 

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